...Peguei-o
em minhas mãos e o fiz repousar no jardim da igreja Santa Cecília, onde fui
batizada. Dei-lhe uma gota d’água, ele suspirou, voltou os olhos para o céu e
morreu.
ADEUS MINHOCÃO
Agora é lei e será demolido ou desativado o Minhocão, como é conhecida a
extensão de 3,4 quilômetros do viaduto ou Elevado Presidente Costa e Silva, via
expressa de interligação da zona oeste ao centro da Capital de São Paulo. O
polêmico projeto, idealizado para desafogar o trânsito da avenida São João, engoliu
áreas verdes e tornou a cidade mais
cinza.
Nesses 44 anos, desde a sua abertura, o Minhocão não resolveu o
problema do tráfego, até porque as indústrias automobilística e
derivados do petróleo, como o asfalto, continuam fortalecidas pelos governos e o transporte de
pessoas, em seus próprios veículos, é sonho de consumo.
O asfalto cobriu os trilhos dos bondes e ônibus elétricos que
transportavam homens de terno e chapéu. Trago na memória passeios de bonde, na
minha tenra infância. Tinha medo de cair porque eram abertos nas laterais.
Lembro-me dos brilhos da cidade, à noite, das letras do extinto magazine Mappin
(1913-1999), que aprendi a soletrar.
Também trago na memória uma tarde de primavera, há dez anos. Eu
caminhava apressada na rua das Palmeiras, em direção à estação do Metrô. Não pude
ficar impassível diante de um pombo que agonizava, envenenado, na calçada.
Peguei-o em minhas mãos e o fiz repousar no jardim da igreja Santa Cecília, onde
fui batizada. Dei-lhe uma gota d’água, ele suspirou, voltou os olhos para o céu
e morreu.
Minha emotividade exacerbada sempre me causou sofrimento diante
de criaturas oprimidas ou de cenas do cotidiano que eu não tenho o poder de
melhorar porque não basta a minha sensibilidade.
Não creio que a demolição dessa engenhoca chamada Minhocão irá resolver
o caos na cidade de São Paulo. É fácil envenenar pombos e aves que sempre
retornarão ao seu habitat, mesmo encontrando concreto onde havia frondosos condomínios
de árvores. Debaixo desses condomínios havia bebês como eu em seus carrinhos, levados
pelas mães tranquilas, para o banho de sol nas primeiras horas da manhã.
Mães e seus bebês jamais estarão nesses espaços públicos
desprovidos de segurança, limpeza e conservação. Quero ver o que farão com os
eternos moradores de rua, que têm sob o Elevado o seu lar, e com os usuários
dessa via expressa.
Jamais a cidade de São Paulo conseguirá recompor o cenário das
praças e parques públicos destruídos para receber toneladas de cimento, aço e
asfalto. Até porque, a cidade não para de crescer e grandes problemas surgem,
em igual proporção, para desafiar a cabeça dos responsáveis pelos cuidados de
cada célula dessa cidade doente, em todos os aspectos.
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A gota d'água que faltava para o Minhocão
Imagem: UOL
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