RESPEITO POR UM HERÓI BRASILEIRO
Sergio Amaral Silva *
Decepcionou-me sobremaneira o texto de Roberto Pompeu de Toledo "Joaquim José, um brasileiro", na revista VEJA datada de 25 de abril de 2007, que circulou no dia do 215º aniversário do assassinato do Mártir da Inconfidência. Toledo começa com a desrespeitosa dúvida se o herói era um "revolucionário consistente" ou um "bobo boquirroto" que pregava a República até às prostitutas. Reduzindo-se o episódio da fala às mulheres conhecidas como "Pilatas" a essa pequena dimensão, perde-se seu sentido maior, capaz de dirimir inclusive a suposta incerteza do articulista.
Cecília Meireles, nos versos do Romance XXXI de seu "Romanceiro da Inconfidência", contribui para esclarecer a questão: "Por aqui passava um homem/- e o povo todo se ria./"Liberdade, ainda que tarde"/ nos prometia." Ou seja, revolucionário consistente, responsável por angariar mais simpatizantes para o movimento sedicioso e o novo regime que ele instauraria, pregava ao povo todo, a quem se dispusessem a ouvi-lo, corajosamente, sem discriminar. Passa então a analisar as três razões do "triunfo póstumo" de Tiradentes. Logo na primeira, chama a atenção a associação de seu nome com o conceito de "herói para personificar os valores que o regime militar (de 1964) pretendia representar". Ainda que se deduza que a iniciativa foi exclusivamente dos militares, a simples menção merece ser corrigida, pela gravidade do que insinua. Pior porque associada mais uma vez à dubiedade de que "como não se sabe direito quem ele foi, virou figura fácil de ser puxada para este ou aquele lado". Para que o articulista usasse seu espaço privilegiado para informar corretamente o leitor e não confundi-lo com essa pretensa neutralidade, seria preciso explicitar: "Sabe-se que Tiradentes foi um brasileiro definitivamente comprometido com a Liberdade de sua Pátria e nem sua ideologia nem sua prática política tinham qualquer semelhança com as do regime autoritário implantado em 1964. Apesar disso, aquele regime tentou se apropriar de parte do prestígio popular do alferes, convertendo-o em Patrono Cívico da Nação Brasileira". Discorrendo sobre a segunda razão, de natureza geográfica, já quase na metade do texto, o articulista revela enfim sua fonte, na qual o trabalho foi, em suas próprias palavras, "fortemente baseado". Embora Toledo não mencione essa data, trata-se de livro de um historiador, publicado há dezessete anos. Uma questão, portanto, se impõe: onde estaria a originalidade dessa resenha tão tardia ? As tentativas de ''enquadrar" o Tiradentes através de comparações com modelos existentes, ainda que inadequadas,se sucedem: Frei Caneca, Bento Gonçalves, Antônio Conselheiro, Padre Cícero. Porém, Toledo desperdiçou a oportunidade e não disse o essencial sobre o alferes: Que os inconfidentes tinham combinado que, caso fossem presos, negariam tudo. Seguiram essa estratégia, inclusive Tiradentes, em seus quatro primeiros interrogatórios. Joaquim José, porém, percebeu que, atuando como propagandista das idéias de liberdade, se expusera muito. Principalmente num processo em que não havia acusações documentais, mas só testemunhos verbais, para ele a condenação seria inevitável. E para o crime de lesa-majestade como a inconfidência, só existia uma pena: a de morte.Tomou então a decisão que o engrandeceria e tornaria imortal perante a História, fazendo dele o único brasileiro cuja data de morte é feriado nacional. E já no quinto interrogatório assumiu sozinho a culpa, na tentativa de convencer os juízes de que só ele conspirara, e assim, livrar os demais. Teria dito na ocasião a famosa frase: "Se dez vidas eu tivesse, todas elas eu daria." Essa é a verdadeira imagem do brasileiro Joaquim José da Silva Xavier, de quem disse seu confessor, o Frei Raimundo de Penaforte: "Se houvesse mais alguns como ele..." Infelizmente, não há. Por isso vivemos estes tempos escuros, em que a roubalheira dos dinheiros públicos, a total falta de solidariedade e respeito, de amor pelo Brasil, a covardia, campeiam. Roberto Pompeu de Toledo cometeu um erro gravissimo. Cunhando epítetos pretensamente irônicos (na verdade, acintosos) como "Macunaíma dos bordéis" ou "adepto falastrão", optou por reproduzir teses de 1990, já exaustivamente debatidas. Com isso, fez com que um importante veículo de nossa imprensa trocasse a possibilidade de divulgar valores tão escassos no Brasil de hoje por um texto, para dizer o mínimo, medíocre. Indiquem-me um brasileiro que tenha oferecido deliberadamente a própria vida para salvar a dos companheiros de ideais e que tenha com isso granjeado o amor de seu povo, e teremos outro candidato ao posto de herói supremo desta (pobre) nação.
(*) Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Ilustração: A leitura da sentença de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), de Eduardo Sá, em óleo sobre tela.